Por Roberto Faria - Sociedade de Advogados em 04 de Dezembro de 2020
RETROATIVIDADE DA LEI 14.071/2020 – APLICABILIDADE NOS PROCESSOS PROCESSOS DE SUSPENSÃO DO DIREITO DE DIRIGIR

A Lei 14.071/2020 recentemente sancionada com vetos e publicada no dia 14/10/2020, passará a vigorar e produzirá efeitos a partir do 12/04/2021.

O presente artigo tem o condão de demonstrar, a possibilidade da Lei 14.071/2020 retroagir e atingir os processos de suspensão instaurados antes de sua vigência.

Com efeito, muito se discute acerca da aplicabilidade do princípio da retroatividade da lei benéfica no direito administrativo punitivo.

Inicialmente, a questão exige uma análise sobre a aplicação da lei no tempo e do postulado jurídico do tempus regit actum, que possuem matriz infraconstitucional na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, cujo artigo 6º assim dispõe:

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

tempus regit actum consagra a regra da aplicabilidade da norma de direito material vigente à época da ocorrência do fato gerador. Contudo, tal preceito é mitigado pelo princípio da retroatividade da lei penal benéfica, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição Federal, que dispõe:

 

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

 

Em outras palavras, podemos dizer que a Lei Penal deve retroagir somente para beneficiar o réu.

Sobre o tema, muitos estudiosos defendem a retroatividade benéfica como princípio geral do direito, e não apenas de direito penal, motivo pelo qual seria possível sua aplicação no processo administrativo punitivo independente de previsão legal.

Nesse sentido, há de se destacar o brilhante voto da Min. Regina Helena Costa, cujo ensinamento dispensa quaisquer reparos:

Em meu entender, a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal.  Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

Vale acrescentar a existência de norma de direito não penal que expressamente determina a aplicabilidade do referido princípio aos ilícitos administrativo-tributários (art. 106, II, a e c, do CTN):

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

  1. a) quando deixe de defini-lo como infração;
  2. c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

 

Quanto ao Direito Administrativo, é preciso destacar que não existe norma expressa proibindo a eficácia retroativa de suas normas jurídicas mais benéficas.

Além disso, não se pode negar a aplicabilidade dos institutos do Direito Penal ao Direito Administrativo, conforme o seguinte julgado:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO REJEITADA. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. EXCESSO DE VELOCIDADE. ESTADO DE NECESSIDADE. AUSÊNCIA DE VOLUNTARIEDADE. DESCARACTERIZAÇÃO DA INFRAÇÃO.

(…)

  1. ENTREMOSTRA-SE PERFEITAMENTE POSSÍVEL O CONTROLE JUDICIAL DE ATO ADMINISTRATIVO TIDO COMO DESARRAZOADO PELA PARTE, SOBRETUDO QUANDO SE CONSIDERA QUE O ESTADO DE NECESSIDADE POR ELA ALEGADO – E AQUI COMPREENDIDO COMO UMA CAUSA DE EXCLUSÃO GERAL DA CULPABILIDADE – APLICA-SE AOS DEMAIS RAMOS DO DIREITO, INCLUSIVE, AO DIREITO ADMINISTRATIVO.

(…)

  1. RECURSO APELATÓRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (APL 844952720088070001 DF 0084495-27.2008.807.0001, 1ª Turma Cível, 23/03/2010, DJ-e Pág. 77, Relator Flavio Rostirola) (grifo nosso).

O poder de punir do Estado na esfera administrativa provém da mesma fonte do Direito Penal, estando intimamente ligados, sendo que ambos os ramos derivam do texto constitucional.

No âmbito do poder punitivo estatal, o ramo que apresenta uma sanção mais áspera é o Direito Penal, possuindo, em razão disso, uma extensa gama de institutos e garantias jurídicas que visam uma maior proteção do indivíduo.

No entanto, o exercício do poder punitivo do Estado também é passível de ocorrer no Direito Administrativo, Tributário, Ambiental, entre outros. Quando há um sancionamento nestes ramos, é necessário que o procedimento esteja protegido por todas as garantias individuais previstas no sistema jurídico.

Portanto, a regra da retroatividade benéfica, por ter origem constitucional, não pode se restringir somente ao campo do Direito Penal e Tributário, devendo ser aplicada também ao Direito Administrativo, motivo pelo qual se mostra perfeitamente aplicável a retroatividade da lei benéfica nos procedimentos administrativos perante o DETRAN.

Não seria razoável o Estado, de forma unilateral e soberana, ao tornar a norma mais branda, continuasse o indivíduo a responder por uma penalidade que deixou de existir. Parece evidente que a nova lei mais benéfica deve ser aplicada aos casos anteriores a sua vigência, desde que ainda pendentes de solução final.

Foi exatamente o que ocorreu na Lei 11.334/06. O Estado, de forma unilateral e soberana, decidiu atenuar o rigor das infrações de trânsito por excesso de velocidade, com a consequente redução do valor da multa e da pontuação previstas no art. 218, do CTB.

A esse respeito, confira-se a seguinte ementa, na qual foi decidido que se deve privilegiar o princípio da retroatividade da lei mais benéfica nos processos administrativos relacionados à infração de trânsito.

ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 202/06. LEI 11.334/06 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 218 DA LEI Nº 9.503/97. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO GERAL DE DIREITO DE RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. 1. Trata-se de apelação da sentença que denegou a segurança por não vislumbrar o direito líquido e certo alegado pelo impetrante, ao argumento de incidência da regra geral da irretroatividade da norma posterior (Lei 11.334/06), que deverá respeitar o ato jurídico da imposição da multa de trânsito, perfeito sob a égide da lei anterior (Lei 9.503/97). 2. À época dos fatos (31.05.2006) a Lei 11.334/06, que deu nova redação ao art. 218 da Lei no 9.503/97 (Código de Trânsito), ainda não existia. Porém quando do lançamento ocorrido em 10.08.2006 já se encontrava em vigor a referida Lei 11.334/2006. 3. O CONTRAN expediu a Resolução de nº 202 de 25.08.2006 no sentido de que as alterações do art. 218 do Código de Trânsito se aplicam, apenas, aos Autos de Infrações lavrados a partir de 26.07.2006. 4. Como todo e qualquer princípio, o da irretroatividade da lei, previsto tanto no art. 5º, XXXVI da CF/88, quanto no art. 6º da LICC não tem caráter absoluto. 5. A própria CF/88, expressa em seu art. 5º, XL a retroatividade da lei benigna. 6. A legislação infraconstitucional igualmente prevê a possibilidade de retroação para beneficiar. É o caso do art. 106 do CTN que elenca as possibilidades de aplicação da lei ao fato pretérito. 7. A despeito da Resolução do CONTRAN, a necessária ponderação sobre a aplicação dos princípios em comento, infere-se que o melhor direito está na aplicação retroativa da lei mais benéfica, privilegiando-se, assim, o princípio geral de direito de retroatividade da lei mais benéfica8. Reforma da sentença para conceder a segurança no sentido de determinar a aplicação retroativa da Lei 11.334/06, às Notificações de Atuação de nºs 6142278 e 6142279 aplicadas ao impetrante. 9. Apelação provida. (AC 200881000113950, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, TRF5 – Primeira Turma, DJE – Data::22/07/2010 – Página::378.) – grifo nosso.

CONCLUSÃO

O que podemos concluir é que os processos administrativos instaurados antes da entrada em vigor da Lei 14.071/2020, ou seja, antes de 12/04/2021, desde que ainda pendentes de solução final à época, sujeitar-se-ão as regras da Nova Lei que dispõe em seu artigo 261 do CTB:

Art. 261 […]

I – sempre que, conforme a pontuação prevista no art. 259 deste Código, o infrator atingir, no período de 12 (doze) meses, a seguinte contagem de pontos:

  1. a)  20 (vinte) pontos, caso constem 2 (duas) ou mais infrações gravíssimas na pontuação;
  2. b)  30 (trinta) pontos, caso conste 1 (uma) infração gravíssima na pontuação;
  3. c)  40 (quarenta) pontos, caso não conste nenhuma infração gravíssima na pontuação;

[…]

Resta dizer que um número significativo de condutores que estiverem respondendo processos cuja somatória não ultrapassem 29 (vinte e nove) ou 39 (trinta e nove) pontos, dependendo da natureza das infrações conforme alíneas “b” e “c”, do Inciso I, do artigo 261 do CTB, poderão ter seus processos anulados pela aplicação da retroatividade da Lei mais benéfica.

A anulação poderá ser feita pela Administração Pública, com base no seu poder de autotutela sobre os próprios atos, conforme entendimento já consagrado pelo STF por meio das Súmulas nºs 346 e 473. Pela primeira, “a Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”; e nos termos da segunda, “a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

E a anulação poderá ser feita pelo Poder Judiciário, o que é mais provável, mediante provocação dos interessados, que poderão utilizar, para esse fim, quer as ações ordinárias e especiais previstas na legislação processual, quer os remédios constitucionais de controle judicial da Administração Pública.

POR: ROBERTO DE FARIA – ADVOGADO – OAB/SP 157.051   e  

DÉBORA JENSEN – ADVOGADA – OAB/SP – 374.756.

REFERÊNCIAS:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14071.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del4657compilado.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

STJ. REsp 1.153.083/MT. Rel. p/ acórdão Min. Regina Helena Costa. PRIMEIRA TURMA. DJe. 06.11.2014.

 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm

AC 200881000113950, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, TRF5 – Primeira Turma, DJE – Data: 22/07/2010.

RECURSO APELATÓRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (APL 844952720088070001 DF 0084495-27.2008.807.0001, 1ª Turma Cível, 23/03/2010, DJ-e Pág. 77, Relator Flavio Rostirola.

Código de Trânsito Brasileiro – Arnaldo Luis Theodosio Pazetti e Julyver Modesto de Araujo – 7ª. Edição – página 390.

Curso de Direito Constitucional – Clever Vasconcelos – 5ª Edição, página 185.

Direito Administrativo – Maria Sylvia Zanella Di Pietro – 31ª edição, página 269).

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